Corrigir o desastre da Internet
A Web descarrilou. Mas alguns pioneiros planejam um autêntico renascimento, um retorno à essência.
"Nós não precisamos de uma revolução, precisamos de um renascimento: o renascimento de velhas ideias, tais como o peer-to-peer [isto é, a conexão direta entre computadores, sem servidores], no novo contexto de uma sociedade digital", diz o teórico da mídia Douglas Rushkoff, que em janeiro publicará o livro Team Human (equipe humana), um chamado a organizar a sociedade entre todos porque "as nossas tecnologias, mercados e instituições culturais que antes eram forças para a conexão e expressão humana, agora nos isolam e reprimem”.
O que pode ter dado errado?
Os criadores da primeira Internet fizeram um bom trabalho no avanço de grandes problemas e soluções: a Web deveria ser uma invenção gratuita, aberta e neutra; o acesso, universal para evitar a desigualdade; era bom desconfiar das empresas que tentassem roubar todo o oxigênio e enclausurar-nos em jardins murados que simulam a Internet real; os intermediários levantavam suspeitas; deviam ser cultivadas as ações para o bem comum (a utilidade pública); a Internet não era para ser uma ferramenta passiva, mas algo que reescreveríamos juntos.O que ninguém viu chegar era o celular (e com ele, a onipresença da conexão), a ânsia das empresas por devorar o nosso tempo e nossos dados, nossa cumplicidade por deixá-las fazer isso e transformá-las em intermediárias de nossas relações, as consequências de conectar tantas emoções nem sempre positivas.
A Internet nasceu com um pecado original que degenerou em usuários infelizes, meios de comunicação em extinção e grandes monopólios dispostos a permitir tudo de modo que possam extrair ouro na forma de dados: um modelo econômico baseado na economia do atendimento, da gratuidade e da publicidade que antes parecia não apenas inofensivo, mas ideal.
A Web é agora tão fechada e monopolista que para muitos é sinônimo de Facebook e WhatsApp... que pertence ao Facebook. "As pessoas em muitos países só sabem se conectar umas com as outras para o benefício de uma empresa de publicidade na Califórnia. É terrivelmente triste e representa uma falha profunda", diz o autor Jaron Lanier. Essas redes "estão projetadas para te enganar, te manipular. Têm um efeito negativo sobre o teu bem-estar emocional, na política, no mundo".
![Corrigir o desastre da Internet](https://ep01.epimg.net/tecnologia/imagenes/2018/11/23/actualidad/1542970848_353132_1542987491_sumario_normal.jpg)
“Bem, acho que estamos mais vulneráveis ao poder inexorável do capitalismo corporativo do que pensávamos. Era mais fácil que as empresas se apossassem da Internet, do que a Internet se apossar das empresas”, diz Rushkoff.
Uma Constituição
O que esse preocupado Berners-Lee anunciou este mês em Lisboa foi um "contrato para a Internet", uma espécie de carta de direitos e obrigações para empresas, Governos e usuários para ser apresentada em maio de 2019, coincidindo com o momento em que metade do mundo terá acesso à Web. Para essa metade, diz a campanha, "os benefícios da Web são acompanhados de riscos demais: nossa privacidade, nossa democracia, nossos direitos".Embora no momento já tenha sido firmado por empresas como Google e Facebook e mais de 80 países e organizações, e os compromissos sejam tão básicos como respeitar a privacidade dos indivíduos, a grande questão é se isso servirá para alguma coisa.
“Deixamos a Internet incompleta, e espaço para os estúpidos monopólios. Foi um enorme erro”
Jaron Lanier, pioneiro digital
Descentralizar, distribuir
Tomar como base apenas leis, tratados e acordos voluntários não parece ser uma estratégia adequada de uma mente como a de Berners-Lee, e de fato não é: o inventor da World Wide Web trabalha em paralelo com o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), no Solid, o mais conhecido dos projetos da chamada "Internet distribuída". Essa ideia reúne milhares de projetos que tentam regressar a uma Internet peer-to-peer, ou seja, verdadeiramente dividida entre todos os computadores conectados à Web, e não armazenada nos servidores de algumas empresas. É uma ideia tão antiga quanto radical. Se a Internet retorna a sua ideia original, tudo poderá mudar. Sem dados não há negócios.No mundo do Solid, por exemplo, ao entrar receberemos um identificador pessoal e o personal online data store (POD), um lugar de armazenamento de dados individual, sobre o qual teremos controle absoluto. A partir daí, não há senhas, aplicativos que não se comunicam uns com os outros ou arquivos privados armazenados por empresas obscuras do outro lado do mundo. Tudo o que você precisa para se comunicar estará lá.
Nessa Internet distribuída, tudo ainda está por fazer, e isso tem atraído as esperanças de uma crescente comunidade de programadores de todo o mundo. "Agora que experimentamos a parte negativa dos intermediários, é essencial construir uma nova Internet que não precise deles", diz André Medeiros, criador do Multiverso, uma rede social de código aberto na qual todos os dados do usuário são armazenados em seu próprio dispositivo e pode funcionar até mesmo sem Internet, pulando de celular para celular.
O dinheiro
Muitos projetos descentralizados trabalham na tecnologia blockchain, uma forma segura de cortar, dividir e armazenar dados em rede e que, entre suas infinitas possibilidades, foi aplicada pela primeira vez para criar criptomoeda. Ao contrário dos pensadores da primeira Internet, os atuais atacam o problema a partir de sua própria essência: o dinheiro.Além do trabalho desesperado da mídia buscando métodos de financiamento alternativos à publicidade, surgem ideias como a de Lanier: por exemplo, pagar e cobrar para usar e contribuir para as redes sociais ou as buscas. "Quando os usuários pagarem às empresas de rede, estas servirão a esses usuários", escreve o autor de Dez Argumentos para Você Deletar Agora suas Redes Sociais. O sistema atual, defende, só permite que as estrelas vivam dele, mas em uma economia profunda e verdadeira não sobrevivem só os atores, mas também o resto das pessoas que trabalham no filme.
Chegarão às empresas comitês transparentes de ética e um maior respeito ao usuário
Carissa Véliz, pesquisadora
A ética
Como o Facebook comprovou, quando uma empresa é tão grande que seu nome se torna sinônimo de Internet, seus problemas passam a ser de todos. Enquanto a rede social ganha tempo depois de ter sido revelada a sua falta de ética após os escândalos da Cambridge Analytica e da propaganda russa, a grande questão é como lhe pedir explicações, como limitar o seu poder, como se certificar de que está à altura de responsabilidades que seus fundadores nunca previram. Uma má decisão do Facebook pode ser fatal para a democracia, e outra do Twitter pode agravar o assédio online ou limitar a liberdade de expressão.Carissa Véliz, uma pesquisadora da Universidade Oxford especializada em privacidade, compara a situação atual com o que aconteceu quando avanços técnicos como o respirador artificial deixaram em apuros médicos e hospitais e, como consequência, se desenvolveu a bioética. Ela explica que surgiram códigos éticos internacionais, comitês de ética transparentes dentro das empresas e um maior respeito à autonomia do usuário. "Estamos numa era muito paternalista da tecnologia, as empresas não perguntam, impõem seus valores e produtos", afirma.
Uma mudança significativa no sistema é que os jovens engenheiros estão deixando de sonhar em trabalhar para as grandes empresas porque cada vez mais eles se fazem mais perguntas. "É muito importante que os programadores pensem nas implicações morais e éticas de suas ações. A tecnologia que automatiza a identificação das imagens pode tornar a saúde mais barata — o que é bom —, mas também tirar os empregos dos técnicos — o que pode ser ruim", diz o professor e ativista Ethan Zuckerman, que ministra um curso no MIT sobre as implicações da tecnologia.
Os dissidentes das grandes empresas também estão sendo fundamentais na mudança. O Center for Humane Tecnology, formado por ex-empregados de tecnológicas que, arrependidos, decidiram trocar o seu trabalho pela conscientização, se tornou famoso por denunciar que os aplicativos são concebidos de forma deliberada para aumentar o vício. Hoje, o Facebook, o Instagram ou o sistema operacional do iPhone informam os tempos de conexão.
Embora intelectuais, Governos, empresas e programadores tentem mudar as coisas, pouco será alcançado se os usuários não fizerem o mesmo. O espanto ainda dura: quem daqueles primeiros usuários, ao se conectarem há décadas, poderia imaginar que teria que resistir a um sistema que iria promover o conteúdo mais emocional (ou seja, o mais rentável), incitando-o a compartilhar notícias falsas ou prejudiciais, a espalhar a ira ou o abuso ou a lhe ceder uma porcentagem crescente de seu tempo de vida?
Voltar a ser cães
D. RODRÍGUEZ
Duas frases resumem a evolução da percepção de privacidade na Internet. A primeira é de 1993, quando em uma piada da The New Yorker
aparecia um cão sentado diante de um computador, dizendo: "Na Internet
ninguém sabe que você é um cachorro." A segunda frase foi pronunciada
por Mark Zuckerberg
em 2010, quando disse que a sociedade já não exigia privacidade. "Hoje
não diria isso", afirma a acadêmica Carissa Véliz, que propõe que o
anonimato pode ser tanto um problema (pelo domínio dos trolls e
assediadores do espaço público) como uma solução que ajuda a recuperar
parte da privacidade e da liberdade de expressão que perdemos: “Não
somos feitos para sermos expostos o tempo todo, isso nos estressa, é um
antídoto para a criatividade, para pensar de forma diferente."
De acordo com o último relatório da WWW Foundation, o
discurso tóxico é "galopante" e quem sofre de forma mais intensa são as
mulheres, os jovens e as minorias étnicas.
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