O maior desastre socioambiental do país simplesmente não aconteceu:
continua acontecendo. As condições climáticas da época de chuvas e
algumas propostas políticas de extinção do licenciamento ambiental
tendem a piorar e replicar a situação
Ruínas
no que foi o distrito de Bento Rodrigues, um ano após a passagem da
lama: ainda pouco foi feito para reparar o estrago (Foto: Flávio
Ribeiro/Portal Vertices)
Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão,
em Mariana (MG), gerou um tsunami de rejeitos de minério de ferro da
Samarco, que percorreu mais de 650 quilômetros, afetou cerca de 40
cidades em Minas Gerais e Espírito Santo, matou 19 pessoas e afogou
grande parte da bacia do rio Doce em lama. Entretanto, aquela data marca
apenas o começo do maior desastre socioambiental que vem acontecendo no
Brasil desde então. Não apenas porque quase nada foi feito para
reverter a situação, mas principalmente porque ainda hoje escoam
rejeitos da barragem, apesar de todas as atividades da mineradora
estarem suspensas.
“A contaminação não cessou em momento algum, e com o período
de chuvas, que está começando, há risco de receberem mais sedimentos
ainda”, afirma Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da Fundação
SOS Mata Atlântica. Além disso, a época aumenta o perigo de ruptura de
outra barragem da Samarco, a de Germano, parte do mesmo complexo da de
Fundão. Em outubro, a ONG realizou a segunda expedição de avaliação da
qualidade da água na bacia e constatou que, dos 18 pontos de coleta
analisados no ano passado, nove trechos seguem em estado péssimo, quatro
estão ruins, três, regulares, um, ótimo e outro está soterrado. Em
2015, 16 localidades estavam péssimas e duas, regulares.
Pesquisadores da SOS Mata Atlântica em um dos pontos de coleta (Foto: SOS Mata Atlântica)
A recuperação, onde houve, aconteceu pela própria força da natureza:
áreas com remanescentes de Mata Atlântica que não foram atingidas pela
lama e que, graças à menor vazão do rio durante o período de seca, não
receberam mais rejeitos. “A SOS está dando voz à água. Pelas análises
físicas, químicas e biológicas, ela está dizendo ‘estou morta’. E nada
está sendo feito para reverter o estrago. Essa situação de impunidade e
inércia é revoltante”, diz Malu.
“É muito cruel achar que só o ser humano sofre com isso. Temos de
considerar toda a cadeia alimentar e todo o ecossistema. Os animais
estão ingerindo essas águas e se banhando nelas”, destaca Marta Ângela
Marcondes, professora e pesquisadora da Universidade Municipal de São
Caetano do Sul (USCS), parceira da SOS Mata Atlântica nessa expedição.
As únicas beneficiadas são as bactérias, todas patogênicas, cuja
concentração já é cinco vezes maior que a registrada em 2015, após o
vazamento. A voz dos atingidos
Resultados como esses não chegam a surpreender, já que a Samarco não
possuía um plano de gerenciamento de risco (que envolve identificação
dos riscos, análise dos impactos e definição de respostas a serem dadas)
e passou a maior parte dos últimos 12 meses dedicada a definir suas
ações. Também contribuiu para isso o acordo interfederativo assinado em
março de 2016 pela Samarco, suas acionistas – a mineradora brasileira
Vale (de capital misto, privado e do governo federal) e a
anglo-australiana BHP Billiton –, governo federal e governos estaduais
de Minas Gerais e do Espírito Santo.
“Um acordo malfeito, porque a responsabilidade da recuperação e da
fiscalização foi entregue nas mãos da própria Samarco. E uma surpresa
para os mais afetados, já que eles não foram consultados”, explica
Fabiana Alves, coordenadora da campanha de água do Greenpeace Brasil.
Por esses motivos, a pedido do Ministério Público Federal, o acordo foi
anulado em julho.
Mesmo assim, a Samarco criou a Fundação Renova em agosto de 2016,
como definido no Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC)
assinado, para administrar R$ 4,4 bilhões por três anos e 39 projetos de
reparação de danos ambientais, sociais e econômicos. Mas o texto prevê
que as ações devem durar até 15 anos e envolver R$ 20 bilhões, no
total. O Doce em Governador Valadares: águas mortas (Foto: SOS Mata Atlântica)
Até o momento, o atendimento aos atingidos se restringe a 8 mil
famílias cadastradas pela Samarco e outras 11 mil que estão em análise,
segundo dados do Ibama. Para o Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), mais de 1 milhão de pessoas foram afetadas em diferentes níveis.
Entre os mais de 30 grupos que o MAB acompanha na bacia do rio Doce,
alguns perderam suas casas, outros, sua renda ou o acesso à água
potável. Também há empresas fora de atividade, como a hidrelétrica de
Candonga, em Santa Cruz do Escalvado (MG). “Alguns municípios viviam dos
royalties dessa geração de energia, mas não há mais água. A barragem é
pura lama sedimentada”, afirma Tchenna Maso, advogada popular do MAB.Tchenna denuncia a indenização de R$ 1 mil oferecida pela Samarco em
alguns locais, com a condição de que o beneficiado assine um contrato
garantindo que não recorrerá no futuro. “Esse valor não paga a caixa
d’água que precisaram instalar e a água mineral que estão consumindo
desde então. Ainda não dá para dimensionar o valor da indenização,
porque os danos não pararam.” Retrocesso total
Diante dessa tragédia e das tentativas desastradas de reparação dos
danos causados, seria natural esperar que as esferas federal e estadual –
sobretudo de Minas Gerais, estado cuja economia depende fortemente da
mineração – começassem a buscar melhores formas de resguardar a
comunidade, o meio ambiente e a administração pública de riscos desse
tipo. Entretanto, o país todo vai no sentido contrário.
Caminham a passos largos no Congresso propostas de simplificação do
licenciamento ambiental – Projetos de Lei 3729/2004 e 654/2015, e
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65. Além de um novo Código de
Mineração, que passaria a permitir exploração de minério dentro de
unidades de conservação. Se qualquer uma dessas flexibilizações for
aprovada, abrirá espaço para desastres acontecerem com muito mais
frequência. Interior
de casa de Bento Rodrigues: por ora, a Samarco só atendeu 8 mil
famílias cadastradas (Foto: Flávio Ribeiro/Portal Vertices)
Nas regras atuais, o licenciamento ambiental – que avalia se um
empreendimento é viável ou não a partir dos impactos socioambientais que
pode gerar – ocorre em três etapas: as licenças prévia, de instalação e
de operação. As propostas reduzem esse processo a uma etapa única: o
autolicenciamento. Basta a construtora apresentar um Estudo de Impacto
Ambiental (EIA), independentemente da sua qualidade e decência, para ter
permissão irrevogável de início das obras.
“Essa alteração eliminaria o tempo necessário para o debate com as
comunidades a serem afetadas. Seria despolitizar a sociedade”, afirma
Tchenna. Para ela, o mais indicado agora não é mexer na legislação, mas
sim investir na estrutura dos órgãos de fiscalização. “O texto da nossa
atual legislação é bom. O problema é a falta de efetividade dada a esse
texto.”
A questão central, resume Fabiana, do Greenpeace, é que as pessoas
confundem crescimento econômico com desenvolvimento. Tornar grandes
projetos de infraestrutura mais fáceis e rápidos – principal
justificativa dessas propostas – sem levar em consideração impactos
sociais e ambientais não é desenvolvimento, é crescimento econômico para
as companhias que realizam esses projetos e que exploram as riquezas
minerais do país. Disso, muito impacta a população, mas pouco é
revertido em benefício para ela. “Não é esse desenvolvimento que o
Brasil deveria estar buscando”, conclui.
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Inoperância
Desde o rompimento da barragem de Fundão, o Instituto Brasileiro de
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já emitiu 68
notificações à Samarco, muitas delas definindo como proceder em várias
situações. Seu mais recente relatório, publicado em outubro e envolvendo
77 locais vistoriados, mostra que as ações da mineradora estão muito
aquém do esperado. Apenas 5% das recomendações feitas pelo órgão foram
cumpridas, 40% foram parcialmente atendidas (confira abaixo a situação
delas) e 55% não foram atendidas.
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